Tampouco me convence a diferenciação que Ivereigh faz sobre a elaboração de Fiducia supplicans e a do Responsum de 2021 sobre bênçãos a uniões homoafetivas, argumentando que o novo texto foi resultado de uma “ampla e cuidadosa consulta”. Quem foi consultado? O plenário do Dicastério Para a Doutrina da Fé e o papa. Em tempos de “sinodalidade” pra lá, “sinodalidade” pra cá, “sinodalidade” pra todo lado, chamar de “ampla e cuidadosa consulta” algo que envolve no máximo umas dezenas de pessoas é contraditório, ainda mais comparando com casos recentes como a consulta ao episcopado que precedeu Traditiones custodes.

Mais interessante é ler a entrevista que o cardeal Victor Fernández deu ao The Pillar logo antes do Natal. Mesmo assim, entrevistador e entrevistado parecem mais preocupados em falar sobre o que a declaração não é e não diz do que sobre o que ela de fato prevê. Está lá inclusive a questão sobre “abençoar a união vs abençoar o casal”, e Fernández se limita a repetir a distinção que o texto faz, sem levar em conta aquilo que acabei de mencionar, que só se é um casal por se estar em uma união. É positivo, no entanto, que o cardeal tenha considerado “inissível” o que está acontecendo na Bélgica e na Alemanha, onde já existe até ritual de bênção para uniões homoafetivas com aprovação de conferência episcopal – embora eu ache os alemães e os belgas não vão parar só porque Fernández ou o papa pediram. Pena que não tenham falado do caso do padre James Martin, que deu publicidade máxima à primeira bênção a casal homoafetivo que ele concedeu depois de Fiducia supplicans (seria capaz de apostar que ele já deu várias outras antes do documento), já que Fernández também falou em discrição.

Creio que não haveria uma rejeição tão veemente ao texto se ele fosse mais claro e evitasse as ambiguidades que serão exploradas no médio e longo prazo

Mesmo trazendo algumas informações importantes – por exemplo, a de que o cardeal-prefeito deve ir à Alemanha em breve –, a entrevista ajuda a entender como o texto da declaração ficou confuso e ambíguo o suficiente para despertar uma reação que não creio ter sido prevista nem por Fernández nem pelo papa, pois foi muito além dos “suspeitos de sempre”, a ponto de o cardeal ter de afirmar, em entrevista a um jornal espanhol publicada depois do Natal, que caberá a cada bispo decidir como colocar a declaração em prática. Conferências episcopais mundo afora já se manifestaram rejeitando a aplicação de Fiducia supplicans, seja por considerar o documento em si heterodoxo ou para impedir eventuais aplicações heterodoxas. O argumento de que a reação na África foi mais forte porque as conferências episcopais não querem ter problemas com governos que criminalizam a homossexualidade não me parece bom; primeiro, porque há bispos africanos que criticam abertamente essa criminalização (no que fazem muito bem, aliás); segundo, porque sempre que foi necessário a Igreja se colocou como contraponto ao Estado; e terceiro, porque houve reação idêntica a Fiducia supplicans em muitos outros países e dioceses onde não existe esse tipo de repressão legal.

Se há algo de indubitavelmente bom em Fiducia supplicans é a mentalidade implícita no texto pela qual a Igreja tem de estar próxima a todos, ser o tal “hospital de campanha” de que Francisco fala desde que se tornou papa. Ela não abençoa nem promove o erro, mas também não fecha as portas a ninguém que deseje um encontro genuíno com Cristo e queira segui-lo, apesar de suas fraquezas e suas cruzes. Eu estaria querendo colocar limites à graça divina se negasse que uma bênção a pessoas que vivem em situações objetivas de pecado – sejam quais forem, tenham ou não a ver com o sexto mandamento – possa disparar nelas um processo de verdadeira conversão. Mas também creio que não haveria uma rejeição tão veemente ao texto se ele fosse mais claro e evitasse as ambiguidades que serão exploradas no médio e longo prazo – e, a respeito de confusão e do mal que ela pode causar, recomendo muitíssimo o texto do arcebispo Charles Chaput na First Things. Por que não trabalhar, por exemplo, em um bom programa de acompanhamento pastoral para quem está nessas uniões? Por que não incentivar apostolados como o Courage? Essas são formas ainda mais eficazes de dar a todos o acolhimento merecido, sem atos isolados que podem ser instrumentalizados para dizerem o contrário do que a Igreja diz.