Algo como duas gerações de brasileiros nunca ouviram falar do personagem “Jovem” – um dos adoráveis estranhos criados por Chico Anysio. A juventude, aliás, fazia parte de suas especialidades cômicas. Ponha-se na lista o sem-noção Bozó, que ava cantada nas gurias dizendo “trabalhar na Globo”, e o escorregadio Patropi – assim chamado, suspeito, em homenagem à inigualável versão de seu amicíssimo Wilson Simonal para a canção País Tropical, de Jorge Ben Jor.
Anysio era ional – e costumava reservar remédios amargos para seus desafetos. Não se pode afirmar que odiava a rapaziada, mas é improvável que a amasse, daí tê-la tratado com generosas gotas de fel. Os personagens jovens de sua incontável galeria de tipos seguiam sempre a mesma cartilha: tinham problemas em pegar no batente, idade mental de 12 anos, pouco sucesso com as mulheres, merecedores de uma das gírias da década de 1970: não avam de “bocós de mola”, incapazes de provocar iração ou cumplicidade.
Nesse sentido, o humorista seguia a média nacional. O Brasil, a rigor, não morre de amores por seus moços, pobres moços. Ainda que a parcela mais civilizada do mundo tenha entendido que não haverá país nenhum sem eles, os jovens, permanecemos agarrados – firmes e fortes – à mais tacanha das tradições ibéricas, para as quais não am de marmanjos, e assim devem ser tratados. É como se ecoasse nos céus da nação verde-amarela uma das máximas de Nelson Rodrigues: “Jovens, envelheçam”.
Justiça seja feita, vai longe o sadismo lusitano de tratar os filhos na base do berro e lambadas de cabo de enxada. O Brasil produziu uma política de proteção quase perfeita, expressa no Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA; saltou de 4% para 13% de universitários; e reconhece que não é mais um país com jovens a dar com o pé, o que implica em se coçar para tirar proveito do bônus demográfico que ainda nos beneficia. Em breve, com a queda da natalidade, seremos uma terra de madurões e vovôs.
Na essência, contudo, pouca coisa mudou. O pouco caso com a juventude é uma camada profunda da cultura, resistente a perfurações, de modo que parecemos fadados a cometer crimes contra esse grupo. O maior deles é lhes negar o futuro. Tal delito se repete a cada vez que um adulto repete o mantra do “no meu tempo é que era bom”. A situação lembra o delicioso filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, no qual um jovem escritor desiludido com o presente se transporta aos loucos anos 20, e depois à Belle Époque, em busca de uma época que merecesse ser vivida.
Alguém diria que sempre foi assim. Nocauteados pelo ar dos anos, os mais velhos costumam dar um golpe baixo e se vangloriar da própria sorte. O ataque não a de uma defesa, uma vez que pouco pode ser feito, diante de um tapete de folhas secas. Mas no século 21 essa tática de guerrilha existencial se tornou algo doentio. O filósofo Luc Ferry – no necessário e urgente ensaio A revolução do amor – chama de bougisme a necessidade intermitente de reverenciar o ado. Para Ferry, é como se uma febre vintage assombrasse o planeta, fazendo do globo um imenso brechó visitado por melancólicos, refratários à frieza metálica (e digital) do futuro.
Nem os jovens costumam se safar dessa cilada, alheios, quem sabe, a uma verdade expressa à perfeição pelo poeta Mário Quintana: “O ado não reconhece o seu lugar. Está sempre no presente”. O discurso sobre o ontem nasce entre o café da manhã e o almoço, não mais do que isso. Mas feitiço é feitiço. As pesquisas comprovam a descrença quase hipnótica na qual está lançada a turma dos “verdes anos”. Não são estudos aos borbotões – como poderiam ser –, mas os poucos levantamentos disponíveis sobre a juventude brasileira trazem ecos desse je ne sais quoi, uma espécie de Bonjour tristesse, de Françoise Sagan, mas nascido ao som de raps e bate-estacas eletrônicos baixados no iPad.
Como de todo o resto, contudo, o atual estado de espírito da juventude não é assunto para amadores. A começar pela palavra. A anos-luz do sentido explosivo que tinha na década de 1960 – debaixo do poderoso bordão “quando penso em revolução, quero fazer amor” –, a “juventude” não cabe mais no singular. Os estudiosos do tema, gente bamba como Mirian Abramovay, José Guilherme Magnani e Michélle Petit, por certo preferem o plural. “Juventudes”. A escolha é poética, precisa e, de resto, salva de reduzir o debate às conversas amenas sobre o grupo de jovens da paróquia. Está se falando de uma turma que morre mais no trânsito, mais exposta à violência, mais propensa ao desemprego, ao suicídio, convidada sem pudores a descascar todos os pepinos do que algum engraçadinho inventou de chamar de pós-modernidade.
Não está sendo nenhum refresco. Pela primeira vez uma geração inteira se levanta da cama para ir à escola sem saber o mínimo sobre como será o tal do amanhã, para o qual, em tese, estão se preparando. Podem chamar de desafio e coisa e tal, mas é cruel com quem mal viu nascer os primeiros fios de barba. Sem falar no desperdício de talentos. Em entrevista, anos atrás, o filósofo Gilles Lipovetsky desabafou a respeito. Acabou por traduzir um sentimento cósmico. Nunca houve uma moçada tão sabida. Há mais faixas de jovens versados em idiomas, viajados, preocupados com as minorias e devotados ao meio ambiente. A demora em lhes permitir o que mais desejam – “uma experiência” – é, francamente, uma sacanagem digna do mundo adulto, pródigo em desmanchar prazeres.
Semana ada, um dos noticiários apontava a descrença dos mais jovens nos partidos. Outra notícia, mais adiante, indicava o pé atrás da gurizada com essa sarabanda em que se transformou a reforma da Previdência. Em 2008, há quase uma década, um levantamento do Datafolha cantava a bola de que jovem tinha medo de crime, do que seria de seus pais, de não conseguir emprego, nutria descontentamento com o corpo. Entre um comitê eleitoral e uma ONG, preferiam a ONG, maneira mais rápida, prática e honesta de tocar a realidade. Àquela altura, pulsava a fé na religião, inclusive por ajudar a fazer amigos, sonho desses meninos e meninas com escassos irmãos, primos e vizinhos. Quatro anos depois, não mais. No Mapa das Religiões de 2012, crescia o ateísmo e a ausência de vínculo confessional nas duas pontas dessa corda: os jovens mais pobres e os mais escolarizados diziam “não” aos credos, cada grupo com seus motivos. Em comum, talvez a solidão, talvez o individualismo.
Tudo isso é para dizer – e não sou eu quem diz – que existe uma pauta capaz de nos redimir da pasmaceira ideológica em que nos metemos: a juventude, no plural, de preferência. Ainda faz eco no ouvido o brado do economista britânico Tony Atkinson, morto em janeiro último. Achavam-no um doido varrido quando dizia que cada pobre do mundo deveria ganhar uma herança mínima, assim que se tornasse jovem. Que usassem a grana para estudar, viajar e inventar, o que lhes é natural. Mudaria tudo, garantia. Atkinson defendia suas ideias libertárias com bases estatísticas sólidas – era, afinal, um homem dado a cálculos. Mas também gostava de citar a balada My back pages, de Bob Dylan, música-manifesto sobre as ideias que se tornam mapas que nos farão sair do lugar. Sabemos quem há de fazer essa cartografia. Pois é, parece apenas romântico, mas também parece possível.