A “abertura da alma” é também o tema central do famoso Mito da Caverna (Livro VII da República), que descreve a conversão do filósofo e a sua ruptura com a ilusão da existência humana (materializada, na visão platônica, pela cultura sofística de Atenas) em direção ao mundo das Ideias. Antes de Platão, os deuses gregos não eram outra coisa que a corporificação de forças cósmicas, que andavam, por entre os homens, nos templos e nas praças. O Deus platônico, o Bem supremo (Agathon), torna-se absoluto, inível ao homem social, conhecido apenas pela intelecção filosófica do indivíduo. Sócrates nunca pretendeu fundar uma religião ou qualquer culto público. Ele apenas testemunhou, enquanto indivíduo, a existência de uma verdade universal transcendente à opinião (doxa) comum e à verdade coletiva. 6163i
Aquilo que Sócrates e Platão propam originalmente a um grupo de filósofos foi universalizado pelo Cristianismo a todos os homens. A partir daí, a transcendência deixa de ser apenas metafísica e a a ser soteriológica. Deixando de lado a intenção hostil, Nietzsche não estava de todo errado ao caracterizar o Cristianismo como um “platonismo para os pobres”. Radicalizando a conquista da filosofia grega, o Cristianismo cortou transversalmente a oposição entre o cosmos e a história (ou entre a natureza e a cultura) por meio de um eixo vertical que liga diretamente a alma humana individual à transcendência.
Como mostra Olavo de Carvalho em O Jardim das Aflições, a partir do momento em que assistimos à negação desse eixo vertical (a “morte de Deus”), tem início, na imanência espaço-temporal, uma disputa contínua para ver quem conquista o reino deste mundo: ora sacraliza-se o cosmos, ora a história; ora o mundo, ora o homem; ora o objeto, ora o sujeito. Toda reação à religião, voluntária ou involuntária, consiste, portanto, numa espécie de combate à transcendência tal qual conceitualizada pelo Cristianismo, uma tentativa de “retorno” à imanência espaço-temporal. É por isso que, como escreve Camus em O Homem Revoltado, a história da revolta, no mundo ocidental, é inseparável da história do cristianismo.