O dispositivo acrescenta mais um juiz ao processo penal, que teria a função de apurar a legalidade da investigação e zelar pelos direitos fundamentais do acusado. Atualmente, um mesmo magistrado participa da fase de inquérito e profere a sentença. Com as mudanças, o juiz de garantias atuaria apenas na fase da investigação, e o juiz do processo julgaria o caso. 435o
A medida está presente em alguns países europeus, mas lá o processo penal funciona de maneira diferente do Brasil. Como explica Andrade, na realidade europeia, o juiz que atua na fase de inquérito só não vai poder atuar no processo caso ele ingresse no mérito e se aprofunde na investigação a ponto, por exemplo, de deferir uma medida cautelar, como prisão preventiva ou interceptação telefônica.
“Se a pessoa for presa em flagrante, para o juiz determinar que ela deverá continuar presa preventivamente, por exemplo, ele terá que analisar em profundidade o envolvimento dessa pessoa e apurar se há fortes indícios do crime. De acordo com o entendimento internacional, para concluir isso, já na fase de investigação o juiz faz uma análise muito próxima daquela que faz para condenar”, explica o promotor.
Como se faz essa avaliação condenatória já na fase de investigação, o juiz não pode atuar na fase processual. No Brasil, por outro lado, nessa primeira etapa o magistrado analisa o caso apenas de forma superficial. Sendo assim, de acordo com Andrade, não há problema quanto à atuação do mesmo juiz na etapa do inquérito e do processo. “O que fizeram foi trazer para cá um elemento do direito europeu como solução para um problema que não temos”, afirma.
As audiências de custódia, que foram incluídas no atual P em 2019 por meio da Lei 13.964, também constam no novo texto. Apontadas como asseguradoras da proteção aos direitos humanos, a medida é alvo de críticas devido ao alto número de liberações de presos – quase 40% de todas as audiências resultam em concessão de liberdade, ainda que as prisões tenham ocorrido em flagrante – e aos significativos custos materiais e humanos necessários para a realização dos atos. Além disso, para autoridades policiais, a medida é fundamentada no argumento preconceituoso de que, como regra, os agentes policiais cometem abusos ao efetuar prisões.
Para o integrante da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, no Brasil a aplicação das audiências de custódia foi deturpada e ou a ter relação com o aumento da impunidade. “Internacionalmente, as audiências de custódia nunca tiveram relação com soltar criminosos ou aumentar a impunidade. O problema da medida aqui no Brasil começou a partir da fala do ministro Ricardo Lewandowski, ao estabelecer as audiências de custódia, quando ele disse que elas trariam economia de R$ 4,3 bilhões aos cofres públicos. Ali ele deu um recado: ‘Vamos soltar bandidos em troca de [economizar] dinheiro’”, opina Andrade.
O texto substitutivo retira a oitiva de testemunhas na primeira fase dos processos de competência do Tribunal do Júri, relativos aos crimes dolosos contra a vida, como o homicídio. A medida é vista como inviabilizadora da condenação de homicidas e como ocasionadora de riscos à vida de testemunhas.
Atualmente, conforme explica o juiz Giovani Guimarães, antes de depor em plenário diante do Conselho de Sentença (jurados), a testemunha é ouvida pelo juiz, com a presença do promotor e do defensor, na fase de issibilidade da acusação. E essa prova é comumente utilizada, posteriormente, no julgamento pelo Tribunal do Júri. “A supressão da oitiva na primeira fase certamente tornará a testemunha mais vulnerável, sujeita a ameaças e até mesmo a atentados contra sua vida, para que não deponha no Tribunal do Júri, o que certamente contribuirá para a impunidade”, explica o magistrado.
O novo texto exclui do P o trecho que determina que só pode haver prisão do réu após a condenação criminal ter sido transitada em julgado, isto é, após esgotada toda a variedade de recursos que podem ser interpostos. Com isso, em tese, seria permitida a prisão após a condenação em segunda instância – medida vista pelas fontes ouvidas pela Gazeta do Povo como positiva.
Em 2019, no entanto, o STF modificou entendimento anterior, de 2016, a respeito do tema e proibiu a prisão após condenação em segunda instância e, com isso, a medida se tornou inconstitucional. Tramita no Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com o objetivo de reverter a decisão. Dessa forma, mesmo com a inclusão do tema no novo Código de Processo Penal, há risco de a medida não ser implementada.
Para o delegado Rodolfo Laterza, mesmo que o trecho seja mantido no novo Código de Processo Penal, é possível que o STF aponte inconstitucionalidade da medida. “Consideramos que há sérios problemas relacionados à interpretação do Supremo quanto à inconstitucionalidade da prisão após segunda instância. Infelizmente por lei ordinária, como é o P, é inviável estabelecer essa possibilidade”, explica.
O novo texto também institui a justiça restaurativa, que tem como objetivo estabelecer um acordo entre a vítima, o autor do crime e a sociedade, com o objetivo de reparar o dano causado. Feito o acordo, a punição poderá ser extinta ou abrandada pelo juiz.
De acordo com Guimarães, a medida desvirtua a essência da pena como retribuição pelo mal cometido e esvazia a noção de responsabilidade pessoal do criminoso. “O projeto chega a falar em ‘corresponsabilidade’ e ‘igualdade’ como princípios da justiça restaurativa, o que causa perplexidade. Como a justiça pode ser restaurada no caso concreto tratando-se ‘igualmente’ criminoso e vítima e atribuindo-se ‘corresponsabilidade’, sabe-se lá a quem, por um mal cometido exclusivamente pelo primeiro?”, questiona o magistrado.
Laterza afirma que a Adepol não se posiciona contra a previsão da justiça restaurativa desde que a medida não seja aplicada em casos de crimes contra a dignidade sexual, violência doméstica e familiar e crimes hediondos e similares. “Isso criaria um perigoso 'abolicionismo penal', que é inaplicável diante da realidade do nosso país, que é pautada por uma cultura de violência”, observa o delegado.
À Gazeta do Povo, o relator, deputado João Campos (Republicanos-GO), informou que após os questionamentos feitos quanto ao texto substitutivo, foram realizadas reuniões com integrantes do Poder Judiciário, das polícias e do Ministério Público, além de advogados, e o texto foi atualizado com a correção de pontos críticos.
Nesta quarta-feira (2), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), declarou extinta a comissão especial sobre a reforma do P e afirmou que será formado um Grupo de Trabalho com no máximo 15 deputados, que terá como objetivo fazer uma revisão no substitutivo e apresentar um texto final em 45 dias. Lira não deu detalhes sobre a data de início das atividades. De acordo com Campos, logo que o grupo for criado, será apresentada a nova redação.
“O texto já mudou bastante, conseguimos um avanço muito bom. Tem mais convergência, está mais consensual, o que facilita sua aprovação o quanto antes. Conseguimos também muito progresso com relação ao combate à impunidade”, diz o deputado, que espera aprovação do PL no plenário ainda neste ano. Dentre as alterações feitas na redação, segundo o parlamentar, foram excluídos temas como a redução do poder de investigação do Ministério Público e a suspensão das mudanças na primeira etapa do Tribunal do Júri. Após a aprovação na Câmara dos Deputados, o texto retornará ao Senado para análise das alterações.