Há, ainda, uma razão essencial para que se defenda a autonomia médica e do paciente neste caso: ainda não existe nenhum antiviral específico contra o coronavírus Sars-CoV-2. Há, no máximo, medicamentos ainda em fase de testes e que parecem ser promissores. Mas, caso realmente se mostrem eficazes, até que cheguem ao mercado continuará havendo pessoas se infectando e necessitando de tratamento. E, quando a outra opção disponível se limita a ir tratando os sintomas e esperar que o corpo vença a batalha contra o vírus (o que nem sempre ocorre, infelizmente), médico e paciente têm todo o direito de, em comum acordo e conscientes das limitações da ciência médica, buscar os meios que, em seu julgamento, podem contribuir para a cura. Negar-lhes essa possibilidade seria muito mais perigoso que dar a médico e paciente o direito de ao menos tentar a cura.

Daí a irrazoabilidade total de não apenas se exigir uma reparação milionária do CFM, como também – e talvez mais ainda – de pretender que famílias de vítimas da Covid sejam indenizadas. Para que tal pleito tivesse um mínimo de sentido, seria preciso provar que, em cada caso específico, o médico tenha prometido ao paciente uma cura garantida, algo que não tinha garantia de entregar; esta atitude poderia ser enquadrada no crime de charlatanismo, previsto no artigo 283 do Código Penal. De resto, se médico e paciente concordaram em recorrer ao tratamento precoce conscientes de suas limitações e de que a cura não era totalmente garantida, não há como pretender uma indenização. Não é preciso ser da área médica para saber que terapias e tratamentos não são 100% garantidos mesmo quando são desenvolvidos especificamente para a condição de que o paciente sofre. Há inúmeros fatores que podem dificultar ou bloquear a resposta ao tratamento. Mesmo assim, não ocorre a ninguém pedir indenização se um familiar falece apesar de os profissionais médicos terem feito todo o possível, empregando sua expertise e as terapias disponíveis.

Nem o caso da Prevent Senior justifica o estabelecimento de um denuncismo de caráter stalinista contra quaisquer médicos que tenham receitado o tratamento precoce

Se no caso da DPU a caça às bruxas se dirige especificamente ao Conselho Federal de Medicina, a I da Covid pretende ir atrás de cada médico, individualmente, que tenha prescrito o tratamento precoce. No mesmo dia em que protagonizou outro circo dos horrores durante o depoimento do empresário Luciano Hang, os membros da comissão aprovaram requerimento que cria um canal de denúncias por e-mail, “para receber denúncias de cidadãos a respeito da recomendação e execução de ‘tratamento precoce’ no contexto da pandemia de Covid-19”, na muito didática explicação feita no Twitter pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da I.

A decisão foi motivada pelo caso da Prevent Senior, que estaria forçando seus médicos a prescrever o tratamento precoce, escondendo a informação dos pacientes – ou seja, situação muito diferente da autonomia de médico e paciente defendida pelo CFM – e omitindo a Covid-19 como causa de mortes ocorridas nos hospitais da rede. São denúncias gravíssimas e que precisam ser investigadas pelos órgãos competentes, e não por senadores oportunistas e politicamente enviesados. Mas nem isso justifica o estabelecimento de um denuncismo de caráter stalinista contra quaisquer médicos que tenham receitado o tratamento precoce, especialmente quando não se diz às claras nem do que seriam acusados, nem o que lhes poderia acontecer.

A origem de toda esta demonização do tratamento precoce – e, agora, dos médicos que o prescrevem, mesmo que de boa-fé e em comum acordo com os pacientes – é evidente: a defesa que o presidente Jair Bolsonaro fez destes medicamentos logo no início da pandemia. A polarização política tomou o lugar do debate científico rigoroso, feito com honestidade intelectual e genuína preocupação com as vítimas da Covid, sobre qualquer tema relacionado à pandemia, sejam máscaras, vacinas, tratamento precoce ou lockdowns. E, enquanto ao lado considerado “certo” por políticos, juízes e Big Techs se permite tudo, ao outro se veda tudo, até mesmo por meio da censura. Não há nada de científico nisto, e a interdição do debate só serve para atrasar o fim da pandemia.