Que havia, portanto, golpistas no sentido estrito do termo – pessoas dispostas a derrubar o governo Lula – é evidente. E o vandalismo era inegável. Portanto, a reação que se esperava das autoridades, das forças de segurança e dos órgãos de investigação era a de identificar quem depredou as sedes dos poderes e quem, estando ou não na praça na tarde de 8 de janeiro, instigou ou levou adiante um plano golpista, separando esse grupo daqueles vários outros que constituíam a grande massa do 8 de janeiro: os brasileiros que não tinham intenção nenhuma de depor o governo, mas apenas de protestar; os que julgavam, erroneamente (um erro de interpretação que o Código Penal inclusive leva em conta em seus artigos 20 e 21), que uma ação militar para tirar Lula do Planalto teria amparo constitucional; e os que foram à Praça dos Três Poderes para se manifestar pacificamente e não participaram da quebradeira.
Não foi isso, no entanto, o que aconteceu. Se a ordem de desmontar os acampamentos no dia 9 era bastante razoável, dado o que havia acabado de acontecer, tudo o que se seguiu mostrou que a repressão ao 8 de janeiro seria baseada no arbítrio puro. Mais de mil pessoas foram encarceradas e tratadas “no atacado” como golpistas, o que estava longe de ser verdade. Esses brasileiros foram mantidos nos presídios da Papuda e da Colmeia sem que houvesse os requisitos legais para a manutenção de prisões preventivas ou temporárias. A Procuradoria-Geral da República ignorou completamente a necessidade da individualização da conduta, pelo qual cada um tem de ser acusado e julgado pelo que efetivamente fez, e ofereceu denúncias genéricas, aceitas sem pestanejar pelos ministros do Supremo com base em uma interpretação bastante falha da noção de “crime multitudinário”.
A maioria dos ministros do STF, por fim, demonstrando desprezo total pelo devido processo legal e pela ampla defesa, já condenou algumas dezenas de manifestantes pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa, dano ao patrimônio da União e deterioração do patrimônio tombado, ainda que em quase todos os casos não houvesse elementos concretos que ligassem os réus a atos de vandalismo ou a intenções golpistas. Parte dos julgamentos ocorre em plenário virtual, o que não garante que os ministros tenham assistido aos vídeos em que os advogados fazem a defesa de seus réus. O descaso do ministro relator, Alexandre de Moraes, foi tanto que culminou com a morte de um dos presos, Cleriston Pereira da Cunha, na Papuda, quando já havia até parecer da PGR pela sua soltura, devido a problemas graves de saúde.
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Vidas e famílias inteiras estão sendo destruídas em nome não da verdadeira justiça, mas de um justiçamento em que algumas das instituições mais importantes da República fecham os olhos à lei e aos fatos para encarcerar por mais de uma década cidadãos cujo único “crime” comprovado é o de estar no local errado, na hora errada, na companhia errada e ter uma determinada preferência política ou dúvidas – embasadas ou não, pouco importa – sobre o sistema eleitoral. E a única forma de escapar desse destino é por meio de um acordo que inclui uma confissão forçada, violando as consciências de quem tem certeza de não ter feito nada de errado naquele dia.
O governo fará fanfarra nesta segunda-feira dizendo que “a democracia esteve ameaçada, mas foi salva”. Os ministros do Supremo dirão que “a democracia esteve ameaçada, mas foi salva”. Inúmeros jornalistas e veículos de imprensa dirão que “a democracia esteve ameaçada, mas foi salva”. Nós, no entanto, dizemos que, sob o pretexto de “salvar a democracia”, ela vem sendo diariamente vilipendiada. O respeito ao devido processo legal é peça tão importante da democracia quanto a realização de eleições e a garantia de que os eleitos cumprirão seus mandatos livremente, mas isso foi esquecido para que se instituísse um regime repressivo que ignora a lei processual e os direitos dos réus, um regime no qual não existe justiça, mas vingança.